Revisitando “As Catalunhas da Europa”

No artigo com este título publicado no Jornal Tornado em 1 de Agosto de 2018 alertei “não parece haver um caminho internacionalmente consensual para que o direito à autodeterminação e à independência possa ser invocado para viabilizar a secessão de províncias e regiões de estados actualmente integrados no continente europeu“.

Quanto à própria União Europeia “apesar de valorizar a ‘Europa das Regiões’ adoptou a propósito dos casos recentes da Escócia e da Catalunha a orientação de que a independência retiraria o novo Estado do âmbito geográfico da União, tendo de pedir a admissão, para o que teria de contar com o acordo de todos os Estados – membros.“(i)

Chamei a atenção para que “o independentismo catalão tem assentado no bullying linguístico das minorias, o que explica a proximidade com que os nacionalismos estónio e flamengo(ii), não sendo de excluir que uma Catalunha independente pressionasse no sentido da retirada de direitos políticos aos espanhóis “de origem”.”

Defendi “se não se pode preconizar no quadro europeu um reconhecimento automático dos efeitos de manifestações de vontade de autodeterminação, convirá garantir o direito à discussão das propostas que apontem nesse sentido, e inclusive o da organização por governos provinciais ou regionais de referendos onde possa votar todo o corpo eleitoral que tem direito a participar nas correntes eleições, ainda que nestes se coloque a questão da secessão.

Este meu quadro de preocupações continua actual e utilizá-lo-ei para, apesar das limitações, tratar do presente diferendo entre a Federação Russa e a Ucrânia

República Federativa da Rússia e Ucrânia, fundadoras da União Soviética

Uma narrativa insistente, muito divulgada no “Ocidente” apresentou a União Soviética como um prolongamento do império russo construído pelos czares

Ora durante os mais emblemáticos acontecimentos das Revoluções de Fevereiro e de Outubro de 1917 e até durante o movimento de 1905 que as precedeu registou-se protagonismo por parte de regiões muito diversificadas(iii).

Durante a Guerra Civil e intervenção estrangeira que se seguiu quase todas as regiões foram envolvidas. Kiev mudou várias vezes de mãos.

Ultrapassada esta fase, colocou-se a questão de saber como se processaria a articulação entre a Ucrânia e a então já denominada República Federativa da Rússia(iv) e entre estas e a Bielorrússia e a Transcaucásia”(v). Um ajuste de contas público terá ocorrido há semanas quando em discurso de Putin que procurou justificar a “acção militar especial” lançada na Ucrânia, Lenin foi responsabilizado por ter dado um estatuto de Estado à Ucrânia que nunca o tinha tido, no que viria a dar razão às teses de Jirinovski, recordou-se a propósito do falecimento deste último, há dias ocorrido.

Está, creio, relatado em muitos locais que, tendo Estaline proposto em 1922 a entrada da Ucrânia e outras repúblicas soviéticas na RSFSR, Lenine se bateu pela criação de “um novo andar”, uma federação de repúblicas iguais em direitos, o que conseguiu, sendo dele também outras frases “Declaro uma guerra para a vida e para a morte ao chauvinismo grão-russo” “é preciso distinguir entre o nacionalismo da nação que oprime e o nacionalismo da nação oprimida…Vale mais forçar a nota no sentido da reconciliação e da doçura a respeito das minorias nacionais do que fazer o contrário”(vi).

Com a criação da URSS ficaram a coexistir nacionalidades e cidadania da União, a qual compreendia um conjunto de Repúblicas em cada uma das quais por sua vez podiam existir republicas autónomas, regiões autónomas, áreas autónomas, sendo que às nacionalidades não correspondia necessariamente um território. Embora no essencial com uma estrutura típica de estado federal qualquer das repúblicas constitutivas deste Estado conservava o direito de secessão, garantido por um dos artigos da Constituição.

Ou seja, embora às repúblicas participantes a participação na União pudesse parecer limitativa, esta posição de princípio aproximava a URSS da definição de Confederação. Aliás a exigência da União Soviética de que as suas Repúblicas tivessem assento na Assembleia Geral das Nações Unidas, que só foi atendida em relação à Republica Federativa da Rússia, à Ucrânia e à Bielorrússia conferia a estas três Republicas as prerrogativas e responsabilidades usuais de um estado.

Este aspecto e não directamente o descrédito do modelo político e social vigente contribuiu decisivamente para a chamada “implosão da URSS”: a pequena Lituánia, apesar de ainda liderada na altura pelo seu Partido Comunista próprio, colocou a hipótese da secessão, Gorbatchov “desaconselhou-a”, o Vice-Presidente que fora forçado a admitir e outros figurões de que a História não reterá os nomes tentaram um golpe para tomar o poder na União Soviética e a Rússia (ou seja o seu recentemente eleito Presidente Boris Ieltsin) e outras Repúblicas deram por finda a União, corria o ano de 1991.

A Federação Russa e as suas dificuldades

A talvez inesperada e demasiado rápida “implosão” da União Soviética em 1991 não suscitou de início especiais dificuldades:

  • os novos “amigos ocidentais” sugeriram à Federação Russa que se fizesse reconhecer como estado sucessor da União Soviética, tendo sido por aí que a Rússia se viu investida na qualidade de membro do Conselho de Segurança titular do direito de veto;
  • as antigas repúblicas soviéticas que tinham no seu território armazenados arsenais nucleares, entre as quais a Ucrânia, cederam-nos sem problemas à Federação Russa;
  • as instalações da Frota russa do Mar Negro situadas na Crimeia ficaram temporariamente cedidas à Federação Russa(vii);
  • pareceu esboçar-se um consenso no sentido de que o “ocidente”, procurando manter uma relação institucional com a Rússia, inclusive através da própria Nato, prescindiria de integrar como membros desta organização as antigas Repúblicas da União Soviética.

Entretanto, extensas operações de privatização dos activos públicos transferiram uma grande parte do poder económico para “oligarcas”, quer na Rússia quer em outras repúblicas da antiga União Soviética incluindo a Ucrânia, tal como já tinha acontecido em outros países do auto-dissolvido Pacto de Varsóvia, que tiveram para o efeito assistência da OCDE e da União Europeia e onde, não se falando de “oligarcas”, a corrupção marca pontos. Portanto, já não vem do Leste qualquer ameaça ideológica ao modelo económico do “Ocidente”.

Uma denominada “resiliência da Nato”, que tem sido estudada e louvada, até em obras académicas, levou-a contudo a continuar a existir e aceitar novos candidatos, cobrindo já, para além dos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, uma boa parte dos países europeus, incluindo um, a Polónia (que institucionalmente está em riscos de responder por incumprimento das regras do Estado de Direito da União Europeia) cuja importância na evolução recente da Ucrânia mostra que os dois países em conjunto estão a assumir contra a Rússia, o papel de “Estado – tampão” que incumbia à Polónia desempenhar entre a I e a II Guerra Mundial(viii). Aliás tanto os EUA como o Reino Unido têm a liberdade de regular as suas acções neste domínio sem qualquer concertação prévia com a União Europeia, sendo que o Reino Unido tem feito, nos últimos anos, inclusive no presente conflito, gala de mostrar que está activo, através da presença dos seus navios em águas que a Federação Russa considera suas ou através da divulgação de análises de situação supostamente originadas nos seus serviços secretos.

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